Todas as coisas estão cheias de deuses.

Liber Ar(d)machanus (“Livro de Armagh”), também conhecido como Canoin Phatraic (“Cânon de Patrício”), é um manuscrito irlandês do séc. IX que contém textos em irlandês antigo e latim. Um desses textos chama-se Collectanea (“Coleções”), de autoria do bispo Tírechán (séc. VII), em que se narra a vida do bispo Patrício. Nesse texto, a palavra irlandesa síde é traduzida pelo latim dei terreni, “deuses da terra”, pois se contava que residiam em palácios subterrâneos, ocultos nas profundezas de colinas encantadas (também ditas síde, de onde receberam o nome).

Mas não apenas nas entranhas da terra habitavam os deuses da Irlanda, pois a Vita tripartita Sancti Patricii registra o nome da divindade Cenn Cruaich, correspondente ao topônimo galês Penn Cruc (Pennocrucium em latim, agora Pen-y-crug), “Cabeça/Chefe da Montanha”. Há também as colinas gêmeas conhecidas como Da Chich Anand/Dá Chích Anann, “Dois Seios de Anu”, em Kerry; a “Montanha da  Cailleach”, Sliabh na Cailleach, na verdade uma série de colinas, localiza-se em Meath, antigo centro cerimonial da Irlanda.

Nesse aspecto, a ligação das deidades à geografia não é nenhuma inovação irlandesa. Antes dos registros irlandeses, feitos na Idade Média, já as culturas célticas do continente europeu veneravam principalmente divindades tópicas (isto é, ligadas a um local determinado) ou regionais, com destaque para os lugares elevados, os picos dos montes.

O pico do Ger (Garrus deus), nos Baixos Pireneus, permaneceu como ente divino até o fim da dominação romana, enquanto outras montanhas desceram pouco a pouco da posição de deuses para a de moradas de deuses. Por exemplo, Dumias, nome do deus tutelar de Puy de Dôme, acabou por tornar-se um simples epíteto ligado a Mercúrio, cujo templo e estátua localizavam-se nesse cume.

No entanto, a religião praticada pelos celtas continentais, considerando-se o testemunho gaulês, dava maior ênfase ao culto das águas (rios, poços, fontes). DiuaDeuaDiuona, “a Divina” era uma designação frequente dos rios gauleses que ainda permanece em nomes atuais: Dive, Divone, Deheune. Nemausus, deus tutelar da cidade de Nîmes, era o gênio de sua fonte; Icaunus, o de Yonne etc. Numerosos eram os gauleses da Bélgica que se orgulhavam do nome Rhenogenus, “filho do Reno”. BoruoBormo ou Bormanus (“o Borbulhante”), deus das fontes termais, deu seu nome a muitas estações termais na atual França: La Bourboule, Bourbonne, Bourbon-Lancy ou L’Archambault.

Ligado de perto à sacralidade das águas, estava o culto das árvores e  florestas. Vosegus foi o deus tutelar dos Vosges silvestres; Arduina, a deusa das Ardennes; Abnoba, a da Floresta Negra. Na região dos Pireneus, muitas inscrições latinas dão-nos a conhecer os deuses-árvores: Robur (Carvalho-Branco), Fagus (Faia), Tres Arbores (Três Árvores), Sex Arbores (Seis Árvores), Abellio (Macieira), Buxenus (Buxo). Árvores sagradas, bosques habitados pelas divindades de sua própria flora, templos naturais que o conquistador romano lembrava-se de derrubar para quebrar a resistência gaulesa.

Um eco distante da veneração arbórea aparecerá na hierarquia das árvores registrada pelo Auraicept na n-Éces e confirmada pelos tratados jurídicos (com a imposição de multas crescentes conforme a classe da árvore ilegalmente derrubada):

Asberat immorro araile co nach o dhainibh itir ainmnighter fedha inn n-ogaim isin Gaedhelg acht o chrandaibh gen gu haichinter anniu araile crand dibh. Air atat ceithiri hernaile for crandaib .i. airigh fedha 7 athaig fedha 7 lossa fedha 7 fodhla fedha; 7 is uaithibh sin a ceathrur ainmnighter fedha in oghaim. Airigh fedha quidem .i. dur, coll, cuileand, abhull, uindsiu, ibur, gius. Athaig fedha .i. fern, sail, bethi, lemh, sce, crithach, caerthand. Fodla fedha andso .i. draighen, trom, feorus, crand fir, fedlend, fidhat, finncholl. Lossa fedha .i. aitean, fraech, gilcach, raid, lecla .i. luachair 7rl.

“Outros, porém, dizem que não de homens as vogais ogâmicas foram em gaélico nomeadas, mas de árvores, embora algumas dessas árvores não sejam hoje conhecidas. Pois há quatro classes de árvores, a saber, árvores chefes tribais [airigh fedha] e árvores camponesas [athaig fedha] e árvores arbustos [lossa fedha] e árvores ervas [fodhla fedha] e é dessas quatro [classes] que as vogais ogâmicas recebem seus nomes. As árvores chefes tribais certamente [quidem] são o carvalho [dur], a aveleira [coll], o azevinho [cuileand], a macieira [abhull], o freixo [uindsiu], o teixo [ibur], o abeto/pinheiro [fir]. Árvores camponesas, a saber, o amieiro [fern], o salgueiro [sail], a bétula [bethi], o olmo/ulmo [lemh], o evônimo [sce], o álamo/choupo [crithach], a tramazeira [caerthand]. As árvores arbustos aqui, a saber, o espinheiro-negro [draighen], o sabugueiro [trom], o evônimo [feorus], o choupo-tremedor [crand fir], a madressilva [fedlend], o pado [fidhat], a aveleira-branca [finncholl]. As árvores ervas, a saber, o tojo [aitean], a urze [fraech], o caniço [gilcach], o mirto [raid], lecla [?], juncos (?) [luachairetc”.

A veneração do carvalho é profusamente conhecida e dispensa elaboração. Basta lembrar que, no dizer de Máximo de Tiro, o Zeus gaulês (ou seja, Taranis), era adorado não sob a forma humana, mas como um carvalho: Κελτοὶ σέβὅσι μέν Δία, ἄγαλμα δὲ Διὸϛ Κελτὶκὸν ὑψηλὴ δρῦϛ (“os celtas sem dúvida adoram Zeus, porém honram-no sob a forma de um alto carvalho”). O Senhor do Céu era venerado como árvore, não em forma humana.

Os celtas inevitavelmente perceberiam as importantes qualidades de numerosas espécies animais, fossem domesticadas ou silvestres, nelas reconhecendo caráter tutelar ou divino. Podem-se citar: Epona, a Égua, Mãe Primordial; Damona, a Vaca; Taru̯os, o Touro (no topônimo Taruisium, hoje Treviso; no antropônimo Deiotaros, rei gálata; Taurisci, “Tribo do Touro”); Lugus, o Corvo (é uma interpretação possível, Lugudunum seria assim a “Fortaleza do Corvo”); Brannovices (“os que vencem pelo Corvo”); Eburones (“Tribo do Javali/Teixo”); Artio, a Ursa, venerada pelos helvécios da região de Berna; Cernunnos, o deus com galhadas de cervo, e tantos outros.

Toda essa informação leva-me a concluir que os deuses dos celtas continentais (conhecidos pela iconografia e menções em autores clássicos) e insulares (desprovidos de iconografia, mas com fontes literárias relativamente abundantes, embora tardias) eram – digo-o contra a minha preferência pessoal – concretos, visíveis, presentes aqui e agora. Não o deus da montanha, mas a montanha que é o deus; não a deusa da floresta, mas a floresta que é uma divindade; rios e fontes são os corpos líquidos de divindades, entes dotados de poder e inteligência, passíveis de emoção e que podem ser aproximados. Sol e vento são divindades que tocam o rosto; a terra, um nume terrível que pode assumir todos os humores imagináveis.

Os mesmos irlandeses, que ocasionalmente conservaram traços mais antigos que seus primos continentais, fornecem indicações da vitalidade, vontade, consciência e poder dos elementos que compõem a paisagem onde se desenrolam as nossas vidas: Grían ocus Esca, Usci ocus Áer, Lá ocus Adaig, Múir ocus Tír (“Sol e Lua, Água e Ar, Dia e Noite, Mar e Terra”) foram os poderes que o rei Loegaire invocou como garantes de suas promessas ao ser feito cativo pelos homens de Leinster; Cúchullain pronuncia um encantamento contra Medb: Adeocho-sa inna h-usci do chongnam frinn: ateoch Nem ocus Talmuin ocus Cruinn intrainrethaig. Gaibid crón-choidech friu: nisleicfe muirthimiu, corroirc monar Féne is int sléib túath Ocháine! (“Invoco o Céu e a Terra e o rio Cronn especialmente. Que duramente batalheis contra eles: possa o mar de ondas abundantes não os abandonar até que o esforço dos Féne esmague-os ao norte da montanha de Ochaine!”).

Para essa percepção do Sagrado, o mundo está vivo e consciente, saturado de Presença, “todas as coisas estão cheias de deuses”. Não somos os donos desta Terra, tampouco os primeiros a castigá-la com nosso peso; é como empréstimo que a ocupamos, geração após geração de homens mortais. Somos hóspedes que podem ser despachados se nos tornarmos excessivamente molestos.

Bellou̯esus /|\


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