Escolhendo um oráculo.

Publicado por fraterabstru

Adivinhação é um negócio antigo e historicamente sempre veio em diversos formatos. Como um método de captar mensagens do mundo oculto, é indispensável para qualquer praticante de magia e, felizmente, há muitas variedades disponíveis hoje — que não envolvem vísceras de animais.

Os sumérios e babilônios, por exemplo, por conta do valor que davam à sua grande invenção, a escrita, como diz Jean Bottéro, desenvolveram a noção do cosmo como uma grande tabuleta de argila escrita pelos deuses, que entregaria informações importantes e secretas a quem soubesse decifrá-lo — daí a invenção de uma forma ainda rudimentar de astrologia. Um processo semelhante ocorreu no Oriente e no Novo Mundo, ao passo que a astrologia mesopotâmica foi absorvida pela cultura grega e formou a tradição astrológica ocidental. Os mesopotâmicos também eram adeptos da interpretação de sonhos, a chamada oneiromancia, e escreveram longos e detalhados tratados sobre o tema, além do haruspício, a interpretação das vísceras de animais sacrificados. Por todo o mundo antigo, formas de adivinhação abundavam, como a necromancia, que é a invocação dos espíritos dos mortos (observada na Odisseia e no livro bíblico de Samuel), o profetismo e o oraculismo, os augúrios, que são a interpretação do voo de pássaros, e a cleromancia, em que se “tira a sorte” com objetos lançados, como dados ou gravetos, tal qual fazem os marinheiros no livro de Jonas (1:7). Uma olhada breve na Wikipédia também nos apresenta uma grande variedade de métodos curiosos, como a piromancia, adivinhação pelo fogo, a hidromancia, pela água, ou até a mirmomancia, observando formigas.

Com o tempo e o acúmulo de técnicas e conhecimento, os métodos divinatórios se tornaram mais refinados e eruditos, exigindo domínio de sistemas simbólicos complexos mais do que pura intuição e tradição oral, além de admitirem respostas com maiores nuances. Provavelmente o primeiro sistema complexo de adivinhação é o I-Ching, que surge na China no século 9 a.C. Por coincidência ou não, o seu modus operandi é o que se tornou a regra entre todos os métodos mais populares: você começa com um elemento aleatório (no caso, palitinhos ou moedas) e com eles chega a símbolos inclusos dentro de um vocabulário pré-definido em que cada um tem seu significado (o I-Ching, no caso, trabalha com 64 símbolos). É elegante e funcional, e é assim que operam os sistemas divinatórios (que costumam ser chamados de oráculos) que selecionei para vermos neste texto.

Como dito, oráculos são indispensáveis para praticantes de magia, pois possibilitam não apenas responder a perguntas mundanas (e às vezes ter o seu ganha-pão lendo para as pessoas), mas também testar o possível resultado de um trabalho, observar seu progresso espiritual e até mesmo conversar com espíritos. Mesmo para quem não pratica nenhuma outra forma de magia, aprender um oráculo é útil para o autoconhecimento, e até os céticos se beneficiam de aprender uma nova linguagem simbólica — afinal, alguns desses métodos como o tarô e o I-Ching tiveram grande impacto cultural, inspirando arte, livros, música e filmes. Como costuma ocorrer na magia, é importante escolher um método que tenha ressonância com você, com a forma como você raciocina e o tipo de prática que você tem.

Neste texto eu vou descrever um pouco da história formato de cinco métodos divinatórios mais populares: cartomancia, runas, geomancia, I-Ching e bibliomancia. As opiniões sobre cada método derivam da minha própria experiência subjetiva, óbvio, e você pode ter uma outra impressão. E, como é um texto breve e para um público iniciante, é claro que eu precisei resumir muita coisa.

1. Cartomancia

Sendo um método dependente do uso de baralhos, que exigem uma certa tecnologia para serem fabricados, a história da cartomancia é recente. Os primeiros baralhos podem ter surgido na China, no século 9 d.C., então passeado pelo Oriente e chegado à Europa por via dos árabes por volta do final do século XIV. Assim como ocorreu com a adivinhação com dados, trata-se da adaptação de um jogo de azar para tirar a sorte, e os primeiros indícios de práticas de cartomancia datam do século XV. A princípio o termo “cartomancia” se refere ao uso de baralhos comuns mesmo, mas a grande dificuldade de se tirar a sorte com eles é que as interpretações variam de local para local e mesmo de cartomante a cartomante, seguindo o que provavelmente é um misto de intuição e tradição oral. Patrick Dunn, em seu Cartomancy with the Lenormand and the Tarot, ensina ainda como criar seu próprio método.

O tarô surge também nesse contexto, combinando as cartas do baralho comum (do ás ao 10, mais cartas de corte, nos quatro naipes) com um conjunto de 22 cartas especiais, os trionfi, que representam conceitos do mundo renascentista. A princípio um jogo de bar, é provável que ele logo tenha adquirido também tons esotéricos — as evidências concretas dessas práticas datam do século XVIII, mas, considerando os elementos alquímicos e ocultos em tarôs renascentistas como o Sola-Busca, é difícil imaginar que tenha demorado tanto para alguém ter tido essa ideia. Dos muitos conjuntos de baralhos de tarô que circularam pela Europa, o que acabou sendo mais bem sucedido foi o que viria a ser conhecido como o Tarô de Marselha. Como o tarô tem 22 trionfi, ou arcanos maiores, o mesmo número de letras do alfabeto hebraico, os ocultistas do século XVIII ficaram em polvorosa e atribuíram as histórias mais coloridas à sua origem com cabalistas e sacerdotes egípcios e tudo o mais.

Ninguém menos do que Éliphas Levi e Papus dedicaram grandes esforços a desvendar os segredos cabalísticos do tarô, além do pessoal da Golden Dawn, a famosa ordem que contou com membros ilustres como Aleister Crowley, Yeats, Dion Fortune e Arthur Edward Waite. Foi este último o responsável pela popularidade deste oráculo: ao revestir os arcanos maiores com uma carga adicional de simbolismo esotérico e conceber ilustrações para os arcanos menores com base em noções de Cabala Hermética, o tarô que Waite concebeu e que Pamela Colman Smith ilustrou acabou se tornando a forma mais popular do tarô no século XX, chamado Rider-Waite-Smith (RWS). A maioria dos tarôs “fantasia” que se encontra por aí — o tarô mitológico, o tarô barroco, o tarô do Bosch, o tarô do Salvador Dali, etc. — são, na verdade, variações do RWS com uma estética diferente. Por fim, a última grande inovação no meio partiu de Crowley, o chamado Tarô de Thoth, ilustrado por Frieda Harris e publicado em 1969 pela O.T.O., que incorpora ainda mais conceitos cabalísticos, astrológicos e thelêmicos, inclusive alterando várias cartas.


Da esquerda para a direita, o arcano maior XIII — A Morte, no Tarô de Marselha, no RWS e no Thoth

A grande vantagem do tarô como oráculo, na minha opinião, é o grau de nuance e profundidade psicológica que ele permite. Com um repertório de 78 símbolos, mesmo uma tiragem simplíssima de uma única carta admite, até para a pergunta mais básica, 78 respostas possíveis. É possibilidade pra cacete. Outra vantagem, sobretudo para iniciantes, é que, sendo ele um método pictórico, apesar das origens hermético-cabalísticas do tarô moderno e de ter 78 símbolos que você vai precisar estudar, as ilustrações tendem a permitir uma leitura intuitiva, o que é bem prático, sobretudo para quem trabalha com isso na hora de mostrar a tiragem para o consulente. E, de quebra, ainda que haja tiragens já consagradas, como a tiragem simples de 3 cartas, a Cruz Celta ou o Templo de Afrodite, há espaço para a criatividade e você pode inventar as suas próprias à vontade, com quantas cartas você quiser. Pode usar só arcanos maiores, pode tirar sempre um arcano maior acompanhado por um menor, misturar, pode usar cartas invertidas. Tem até uma tiragem famosa, da Golden Dawn, que utiliza todas as cartas (e deve demorar um dia inteiro para interpretar).


Da esquerda para a direita, o arcano menor do 2 de copas no Tarô de Marselha, no RWS e no Thoth

Entre as desvantagens, podemos dizer que o tarô tende a pecar pelo excesso. Uma carta dificilmente vai ter um sentido unívoco — entre os sentidos positivos e negativos, os simbolismos mais tradicionais, dos livretinhos, os detalhes imagéticos em cada encarnação do tarô e as dimensões esotéricas, são muitas camadas de significado, o que pode deixar o iniciante perdido até desenvolver uma familiaridade com o oráculo, que é o que vai guiar as suas leituras. O importante, no fim, com a experiência, vai ser o que cada carta significa para você. Para quem está começando, eu recomendo comprar o RWS ou alguma variação e estudar pesado.

Ainda sobre cartomancia, eu não poderia deixar de mencionar o Lenormand, ou “baralho cigano”, concebido pela famosa cartomante francesa do século XVIII, Marie Lenormand. A princípio um método de cartomancia com baralhos comuns, usando 36 das 52 cartas, reproduções posteriores passaram a usar ilustrações que demonstram mais claramente o sentido dessas cartas. Assim, com apenas 36 símbolos, um simbolismo menos obscuro, com cartas com nomes como “sorte” ou “caixão” (sem o fardo da bagagem esotérica ocidental) e uma tendência a dar respostas mais diretas e menos psicológicas, o Lenormand pode ser uma ótima introdução à cartomancia, além de um oráculo e ferramenta mágica utilíssimos por si só. Sobre esta última questão, aliás, tanto o tarô quanto o Lenormand oferecem incontáveis oportunidades para conjurações, e a literatura a respeito é vasta¹. Só tome cuidado para não misturar os seus baralhos de tiragem e o seu baralho para rituais.

2. Runas

“Runa” é uma palavra derivada da raiz germânica run-, que quer dizer “segredo” e se refere às letras do alfabeto dos povos germânicos do começo da era cristã, chamado futhark, adaptado do alfabeto itálico antigo. E, assim como ocorreu entre os povos do Oriente Próximo (pense na ênfase dada pelo judaísmo à sacralidade do hebraico), a introdução da escrita gerou uma reverência pelos possíveis poderes mágicos dessa invenção. O poema Hávamál, por exemplo, reconta como Odin sacrificou-se para si mesmo e passou nove dias e nove noites pendurado na árvore Yggdrasil e trespassado por sua lança para obter o segredo das runas.

E você aí reclamando de ter que ler uns livrinhos.

Apesar das evidências históricas e referências mitológicas da prática de magia rúnica, ao que tudo indica, o uso como oráculo é, assim como o tarô, uma concepção moderna: o místico sueco Johannes Bureus, no século XVII, inspirado por visões e noções cabalísticas, criou um sistema chamado Adalruna, mas a popularidade das runas hoje deriva das publicações, a partir dos anos 1980, de Ralph Blum (que se inspirou no I-Ching) e Stephen Flowers (que se inspirou no hermetismo). Apesar dessa história conturbada, as runas são um método legítimo (mais sacro que o tarô, se for pensar, que começa no boteco) e extremamente interessante de adivinhação.

Seu vocabulário simbólico consiste em 24 runas, uma para cada letra do alfabeto escandinavo². No caso do tarô, você precisa comprar o baralho (a não ser que você seja dono de uma gráfica); já com as runas, apesar de você poder adquiri-las também já prontas, elas podem e idealmente devem ser feitas em casa, gravando-as ritualmente (os traços são simplíssimos) em pedras, peças de madeira, metal ou ossos, que então você guarda num saquinho. Esse aspecto DIY, além de criar uma relação mais íntima com a ferramenta, faz delas instrumentos mágicos poderosos.

As runas tendem a ser divididas entre runas de fogo e runas de gelo, uma noção ligada à sobrevivência no rigor dos invernos escandinavos (daí que as runas de fogo tenham uma conotação mais positiva e as de gelo, bem, não tanto negativas necessariamente, mas mais de introspecção, cuidado, estratégia, etc.), e têm associações aos vários deuses do panteão escandinavo: Tiwaz, letra t, que parece uma flechinha para cima, é a runa do deus bélico Týr, que representa as forças divinas da ordem e da justiça; Ingwaz, de som ng, um losango, é a runa do deus da fertilidade Ing, logo representa um período de desenvolvimento de um potencial criativo, e por aí vai. Como são apenas 24 runas, trata-se de um oráculo de respostas bastante diretas e com o qual é fácil se familiarizar, especialmente se você tem interesse pela religião nórdica e conhece bem seus mitos. Assim como o tarô, há uma grande flexibilidade nas tiragens: você pode fazer uma tiragem padrão, simples, de 3 runas; distribuí-las num pentagrama com os elementos; montar uma mandala astrológica com 12 runas, ou então usar sua criatividade e inclusive considerar a posição física em que as runas caem ao serem jogadas como um elemento interpretativo. E quando eu digo que as respostas são diretas, elas são diretas mesmo, sem rodeios. As pessoas volta e meia contam que “levaram uma porrada” do tarô porque fizeram uma pergunta e a resposta lhes mostrou uma verdade difícil de engolir, mas a minha experiência é que o tarô é relativamente sutil em comparação com as runas.

Sua grande vantagem e desvantagem é sua relação indissociável com a cultura e religião nórdicas. Para quem pertence à religião Ásatrú, como é conhecido o neopaganismo nórdico, as runas são, evidentemente, o oráculo e ferramenta mágica ideais, mas, se isso não é do seu interesse³, então é provável que você não vá conseguir criar muito gosto pela coisa.

3. Geomancia

Do grego para “adivinhação pela terra”, uma tradução do árabe ‛ilm al-raml, “ciência da areia”, a geomancia é um oráculo que surgiu no Oriente Próximo durante o medievo, de inspiração hermética e origens lendárias (atribuídas ao sábio Idris, também conhecido como Enoch), e depois levado à Europa, onde se tornou bastante popular nos meios eruditos até ser desbancado pelo tarô. Seu método parece complexo a princípio, mas é bastante lógico e coerente.


As 16 figuras geomânticas e seus nomes

O vocabulário da geomancia consiste em 16 figuras de composição binária, representadas por pontinhos, de modo que cada figura tem entre 4 e 8 pontinhos divididos em 4 linhas. A primeira linha representa o elemento fogo, a segunda ar, a terceira água e a quarta terra. Se uma figura tiver um elemento em sua forma ativa, então ele é representado por um pontinho só; se passiva, por dois pontinhos. Assim, por exemplo, a figura laetitia (literalmente “alegria”) tem apenas o elemento fogo ativo e todo o resto passivo (um pontinho na linha de cima, seguido de dois pontos abaixo e mais dois abaixo e mais dois abaixo); tristitia (“tristeza”) tem apenas terra ativa e o resto passivo; acquisitio (“aquisição”) tem ar e terra ativos, e por aí vai. Apenas via (“caminho”), uma figura de mudança rápida, tem todos os elementos ativos, enquanto populus (“povo”), uma figura de estabilidade por inércia, tem todos eles passivos.

Originalmente, o geomante formulava a pergunta e entrava num transe leve (o que os caoístas hoje chamam de “gnose”) e, com um graveto, fazia várias sequências de marcações na areia. Assim, as figuras eram formadas ao se contar essas marcas depois (daí a importância do transe, para você não contar as marcas racionalmente). Por exemplo, se a primeira linha tivesse um número par de marcas, então o elemento fogo era passivo; se ímpar, ativo. Se a segunda linha tivesse um número par, então ar era passivo; e assim por diante. Dessa maneira, o geomante constituía 4 figuras, chamadas de mães, que eram usadas para gerar matematicamente o restante da carta geomântica. As últimas figuras geradas, chamadas de juiz e testemunhas da direita e da esquerda, davam a sentença final da pergunta.

A geomancia não admite espaço para tiragens criativas — o método é único — , mas dá para extrair grandes quantidades de informação relevante de uma carta geomântica. Ela permite dar respostas de sim/não, se o resultado será positivo ou negativo, como e as origens e motivos para isso, localizar coisas perdidas e, pelo que eu vi, até fazer previsões meteorológicas. Outra vantagem é que você não precisa se ater ao método original com um graveto e areia: é possível replicá-lo com papel e caneta ou utilizar dados (as formas dos dados de RPG, sólidos platônicos, têm relação com os quatro elementos), moedas, cartas e pêndulos, o que for mais interessante para você. É um formato de oráculo completamente independente da mídia física. Seus símbolos são complexos e exigem algum conhecimento de filosofia hermética, pois fazem referência às interações entre os quatro elementos e têm associações astrológicas com os planetas (laetitia, como uma figura feliz, está ligada a Júpiter; tristitia, a Saturno, etc.), mas, sendo apenas 16, não demora nada para se familiarizar com elas.

A maior desvantagem da geomancia é a sua obscuridade e rigidez — não tem esse aspecto criativo, intuitivo e lúdico que atrai as pessoas para o tarô, por exemplo. Pouca gente conhece e, como vocês podem ver, é difícil de explicar. Além do mais, as figuras são abstratas, não pictóricas, o que não é muito atraente. Se você tira uma carta de 10 de espadas no tarô, que no RWS mostra uma figura morta com 10 espadas cravadas nas costas, o consulente entende na hora… o mesmo não acontece se você mostra os 5 pontinhos de uma cauda draconis. Historicamente, autores como Robert Fludd, no século XVI, e o pessoal da Golden Dawn, escreveram sobre geomancia, mas, se você quiser aprender hoje, o livro Geomancia, o Tarô da Terra, de Chantal Mehiel, está disponível fácil na Estante Virtual, e eu recomendo demais, em inglês, a leitura dos livros do John Michael Greer e do blog do Sam Block, grande geomante, mago hermético e sacerdote Lukumí. Nele você também pode ler extensivamente sobre as possibilidades da magia geomântica, mantrasmudrassigilos e correspondências e tudo mais.

4. I-Ching

Como dito já, o I-Ching ou Yijing, “Livro das Mutações”, é, dentre os oráculos aqui listados, o mais antigo, notável por ser não apenas um texto útil para práticas divinatórias, mas ainda uma influência imensa tanto para a filosofia do taoísmo quanto para a do confucionismo (o que é impressionante, porque as duas escolas eram rivais). Segundo a lenda, o sábio Fu Xi, do terceiro milênio a.C., teria tido a revelação dos trigramas, figuras de 3 linhas representando as interações entre as forças mais básicas do cosmo, yin yang, no casco de uma tartaruga (item já tradicionalmente usado na China para adivinhação), e a combinação desses trigramas gerou os hexagramas do I-Ching, batizados individualmente pelo rei Wen, da dinastia Zhou, século 9 a.C. Seus primeiros textos de fato datam da época dessa dinastia, mas emergem, na verdade, a partir de uma provável tradição oral que aos poucos foi sendo registrada e comentada, até obtermos uma versão mais estável do texto do I-Ching por volta de 168 a.C. Então ele chega ao Ocidente no século XVII, por conta dos jesuítas, e desperta o interesse de ninguém menos que Leibniz, um dos inventores do cálculo e fã de coisas místicas no geral. Mas é no século XX que a sua popularidade explode por aqui, graças à atenção dada por Carl Jung, que também era fascinado pelo tarô e pela astrologia, e artistas como John Cage, Borges, Herman Hesse e Philip K. Dick.

O vocabulário do I-Ching é, como o da geomancia, formado por símbolos de constituição binária — mas, enquanto na geomancia temos cada elemento em sua forma ativa ou passiva, com 4 linhas com um ou dois pontos cada, o I-Ching oferece 6 linhas que podem ser contínuas (yang, ativas) ou interrompidas (yin, passivas) e que também têm conexões com os elementos chineses. Como qualquer um que tenha familiaridade com binário sabe, esse aumento de bits amplia o repertório de 16 para 64 figuras, chamadas gua. Por conta dessa estrutura de seis linhas (dois trigramas), os gua são chamados de hexagramas⁴ e cada um tem um sentido próprio. A 1ª figura, por exemplo, com todas as linhas yang, é Qian, o céu, com o sentido de inícios. A 2ª, Kun, tem todas as linhas yin, representando a terra como um símbolo de receptividade. E por aí vai.

Também como a geomancia, o método de leitura é único, porém mais simples, constituindo apenas dois hexagramas, um para o presente e outro para o futuro. Tradicionalmente gerava-se o hexagrama por cleromancia, com gravetos de milefólio, mas a técnica moderna costuma utilizar moedas. Você começa constituindo-o de baixo para cima, jogando 3 moedas. Dependendo do resultado (2 caras e 1 coroa, 2 coroas e 1 cara, 3 caras ou 3 coroas), produz-se uma linha yang, uma linha yin, uma linha yang mutável ou uma linha yin mutável. Esse processo é repetido mais 5 vezes e voilà, eis o hexagrama do presente. Para se gerar a segunda figura, do futuro, você observa a primeira e a copia, transformando todas as linhas mutáveis em seu oposto — por isso o nome, Livro das Mutações. Feitos os dois hexagramas, você consulta o livro para ver a mensagem que responde à sua pergunta. É bem engenhoso.

Há muitas vantagens no I-Ching. Com um pouco de experiência, você consegue gerar os hexagramas muito rapidamente, em uns dois minutos. E, apesar do repertório imenso, perdendo só para as 78 figuras do tarô, você pode usar o I-Ching por anos sem precisar memorizar todos os hexagramas, haja vista que você vai consultar o texto todas as vezes — ou seja, não precisa correr para estudar e aprender tudo antes de tentar a primeira tiragem, dá para pegar o livro, as moedas e já sair jogando. Porém, os sentidos de cada hexagrama são profundos — a edição comentada que eu consultei aqui chega a umas 500 páginas — e o texto é denso, em suas revelações sobre a metafísica taoísta. Trata-se de um método menos para previsões diretas e objetivas e mais para a reflexão, então é bom ter isso em mente. É óbvio que quem tem familiaridade com o taoísmo e cultura chinesa vai conseguir fazer o melhor proveito do processo, mas não é obrigatório.

Por fim, sobre as potencialidades mágicas dos hexagramas, eu suspeito que eles possam ser usados como talismãs e duvido demais que em seus milênios de história nunca ninguém tenha pensado nisso, mas não tenho conhecimento ou literatura sobre o assunto, aí não saberia dizer por qual método prosseguir.

5. Bibliomancia

A forma mais simples de bibliomancia consiste em escolher um livro — tradicionalmente a Bíblia ou a obra de Homero ou Virgílio —, abri-lo a esmo, numa página qualquer e apontar para uma linha qualquer, então observar como o trecho destacado dialoga com a pergunta feita. Esse método, em tese, pode ser aplicado a qualquer livro, mas é evidente que um Vade Mecum ou um tratado de física talvez tenham dificuldades para responder perguntas sobre certos temas como amor, por exemplo, então é bom escolher bem a fonte. Uma versão moderna, que eu acredito que não seja uma opção muito séria, mas ainda assim digna de menção, é o Livro da Sorte, criado especialmente para servir de oráculo, que me parece que é ou já foi popular entre adolescentes.

Um texto dos Papiros Mágicos Gregos (PGM VII. 1–148, p. 112 da edição do Betz) ensina ainda o Oráculo de Homero, um método bastante interessante, que lembra uma versão mais pobre do I-Ching: numa tabela ele reúne uma seleção de 216 versos avulsos da Ilíada e da Odisseia, cada verso sendo equivalente a uma combinação de dados. Então você joga um dado de seis lados três vezes, observa a combinação e confere o resultado na tabela. Assim, a combinação 6–6–1, para dar um exemplo, resulta no verso 363 do canto 21 (só para constar, não há qualquer relação entre os números dos dados e os números dos versos) da Odisseia: “Breve hão de nas pocilgas devorar-te cães nutridos por ti” (tradução Odorico Mendes). Certamente um péssimo agouro seria tirar esse resultado para qualquer pergunta. Infelizmente o papiro está incompleto (tem umas 10 linhas faltando), mas quem é sistemático que nem eu pode se inspirar nesse método para desenvolver um oráculo bibliomântico com um autor qualquer do seu gosto — William Blake, Emily Dickinson, Baudelaire, Hilda Hilst, Carlos Drummond de Andrade, as possibilidades são inúmeras. A bibliomancia tem a evidente vantagem de ser um oráculo prático e direto, sem a necessidade do intermédio de símbolos arcanos e abstrusos com os quais é necessário se familiarizar antes de qualquer coisa, mas a falta desses símbolos faz com que esse oráculo não possa ser usado magicamente como os outros.

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Então, por onde o iniciante deve prosseguir? Como eu disse, isso vai depender das suas predisposições, práticas anteriores, gosto, etc. O tarô é sempre a opção mais óbvia, e é fácil adquirir um baralho em qualquer loja esotérica, mas também não se deve desprezar o Lenormand. Para quem quer ter um método prático e mais imediato, eu recomendo tentar a bibliomancia, e o I-Ching também é ótimo para quem não tem experiência com oráculos. Quem tem problemas com a profundidade do tarô e do I-Ching pode se sentir mais à vontade com runas e geomancia, que, ainda que ofereçam respostas profundas também, admitem a possibilidade de respostas diretas, inclusive de sim/não. Tarô e runas são bons para quem gosta de inventar tiragens, além de serem úteis para comunicação com espíritos, enquanto I-Ching e geomancia têm um método fixo, que oferece a vantagem de não precisar pesquisar ou pensar “que tipo de tiragem é melhor para essa pergunta?”. Para magia, o tarô tem as vantagens de oferecer técnicas de pathworking (um tipo de meditação guiada com tarô), além de 78 conjurações possíveis, o que abrange praticamente qualquer cenário que você possa querer trazer à tona, enquanto geomancia e runas possibilitam o uso de técnicas mágicas de mão livre, que podem ser feitas de maneira mais casual, na rua, etc. Na dúvida, eu recomendo estudar um desses oráculos a fundo e depois ter ainda um segundo como reserva (o meu par é tarô e geomancia) e você vai poder observar como, com frequência, eles dizem coisas parecidas de maneiras muito distintas.

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[1] Além do livro do Patrick Dunn, eu lembro ainda dos seguintes volumes: Portable Magic: Tarot Is the Only Tool You Need, do Donald Tyson; The Tarot Grimoire, de Henry Ho; Tarot Spells, da Janina Renee; e Tarot & Magic, do Donald Michael Kraig, entre outros. Dá tranquilamente para ter toda uma prática mágica só centrada no tarô. Eu falo sobre o assunto num outro texto.

[2] Tem um pessoal que às vezes inclui uma 25ª runa, uma runa em branco que chamam de “runa de Odin”, mas isso irrita os mais puristas.

[3] É o meu caso. As vezes em que alguém tirou runas para mim foram ótimas (abraço pra Ju Ponzi! recomendo demais os serviços dela), mas infelizmente tenho zero ressonâncias com o panteão nórdico (minha preferência é pelo material espiritual do Antigo Oriente Próximo). É lamentável também que a cena tenha tantos nazistas, o que também não ajuda.

[4] Não confundir com o hexagrama na acepção ocidental, que descreve a estrela de seis pontas ou estrela de David.


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