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Quando dizemos “eu”, a quem esse pronome pessoal se refere?
Eu entendo, pessoalmente, que numa frase como esta que começa com “eu entendo”, o “eu” aqui se refere a uma certa entidade, no sentido amplo da palavra, uma consciência associada e delimitada a um certo corpo físico inserido no tempo e no espaço. Desde que veio a este mundo, este eu desfruta de um estado de consciência mais ou menos ininterrupto, tem acesso a um repertório de memórias, que são os registros sensoriais das coisas que acontecem (processados por essa consciência), e à capacidade de pensar e fazer uso da linguagem, assim encadeando esses eventos de modo a constituírem uma narrativa, com relações entre si. Se eu tivesse acesso direto ao corpo (ui) e memórias de quem está me lendo agora, tudo seria mais bagunçado, e nosso entendimento do “eu” seria mais fluido, mas foi assim que as coisas calharam de acontecer.
Esse “eu”, porém, é apenas um dos componentes de quem somos. Muito da literatura e pensamento do século XIX girou em torno de descobrir o lado irracional do nosso eu, aquela parte de nós que é o grande tapete para baixo do qual nós varremos tudo que não nos agrada, e então Freud concebeu a partir disso suas noções do inconsciente no começo do século XX1. Tem uma parte de nós que não é racional, que nos impele a ações que o lado racional, consciente e linguístico pode rejeitar e que se comunica de modo indireto, por via dos sonhos, por exemplo. As coisas que o nosso eu racional priorizam, como sentido, não são tão relevantes para essa parte, que valoriza mais o emocional.
E depois tem uma parte de nós que está num grau ainda “inferior” (não num sentido pejorativo, mas pensando no eixo vertical como metáfora para a relação entre o sutil e o denso), na sala de máquinas da nossa existência, que é a parte que trata da nossa fisiologia. Ela tem sede, fome, tesão, sono e vontade de ir no banheiro. Sua forma de comunicação é ainda mais primitiva, na medida em que sequer utiliza os símbolos de que o inconsciente tanto gosta, mas sensações físicas.
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Na literatura esotérica, cada uma dessas partes é chamada de um de nossos corpos sutis, sendo cada um deles equivalente a um dos chamados planos do jargão teosófico, as várias seções da realidade que compõem o mundo invisível. O primeiro “eu” equivale ao corpo mental; o segundo ao corpo astral (também chamado de emocional); e o terceiro ao corpo físico/etérico, o mais próximo do mundo material. Como podemos ver, cada um desses corpos tem uma função específica, uma necessidade e até mesmo desejos próprios. A metáfora mais comumente usada é a de que eles são veículos por meio dos quais podemos explorar essas várias realidades.
O corpo físico/etérico tem a função, obviamente, de cuidar da nossa existência material, por isso suas necessidades são materiais. Quando morremos, esse é o primeiro corpo que deixamos para trás, porque, ao sairmos dessa realidade ele não tem mais função. Ele precisa ser nutrido e protegido contra os perigos de violência, doença, das intempéries, etc. Seus desejos são de evitar a dor e buscar o prazer.
O corpo astral/emocional permite navegar o plano astral, que é mais sutil do que o físico/etérico. É por meio dele que nós sentimos nossas emoções e acessamos partes da existência em que os limites entre as coisas são mais porosos do que no plano físico. O que você vê quando fecha os olhos? Nesse espaço da chamada imaginação, é possível projetar imagens conscientemente (e muito do treinamento mágico contemporâneo gira em torno de exercícios de visualização), mas, em certos contextos, é aí também que nós recebemos imagens que não partem de nós mesmos – ou pelo menos não da nossa parte racional. Esse é um conceito básico da comunicação espiritual. Sendo assim poroso, é por meio desse corpo que vivenciamos a experiência da empatia. Em termos de necessidades, o corpo astral precisa de um tipo de alimento mais sutil, o alimento emocional (amor, em resumo) e pode ter desejos que não são necessariamente físicos, mas envolvem prazeres ligados às emoções. Ouvir uma música, por exemplo, que nos faz sentir algo específico é uma forma de satisfazer desejos do corpo emocional.
Por fim, o corpo mental nos permite lidar com conceitos e usar nossa inteligência, inclusive para coordenar os outros corpos. Ele tem fome de estímulos mentais e precisa ser nutrido aprendendo coisas, mas o seu desejo principal é um desejo por sentido. Algo que para o corpo físico pode ser uma experiência desagradável tem valores diferentes para nós, em termos mentais, dependendo do contexto. A experiência da fome é desagradável, por exemplo. Mas há muita diferença entre passar fome por não ter o que comer e passar fome de propósito, seja por dieta ou por conta de um jejum religioso. O que muda é a moldura conceitual que dá um sentido para as coisas e as insere numa narrativa.
Com frequência, nossas necessidades e desejos entram em conflito. Imagine o caso de uma pessoa que está tendo um relacionamento sexual com outra. Essas duas pessoas A e B têm uma química sexual fenomenal, porém a pessoa A tem uma necessidade emocional que a pessoa B não tem e gostaria de ter algo mais profundo, o que a pessoa B não quer, pois está satisfeita tendo algo apenas sexual. Embora os desejos da necessidade mais inferior estejam sendo supridos, no nível emocional fica essa insatisfação. No nível mental, a pessoa A pode até saber que está descontente com essa relação, mas continuar se submetendo a ela mesmo assim, porque não consegue fazer esse lado racional predominar sobre os outros. Ela não sabe que não faz bem, mas não resiste e assim todas essas partes de si mesma se encontram em guerra, o que leva a um sentimento de fragmentação que é tão caro à literatura do modernismo.
É interessante frisar que esses corpos também possuem equivalentes na terminologia cabalística. O nosso corpo etérico é o nefesh, chamada de “a alma animal”, a parte responsável por movimentar o corpo físico (guf), associada à nossa respiração2 e ao nosso sangue (Levítico 17:11, “Porque a vida da carne (nefesh) está no sangue”). Cada uma das partes da alma tem uma equivalência a uma sefira da Árvore da Vida, um dos quatro elementos clássicos e uma das letras hebraicas do Tetragrama YHWH. No caso de nefesh, sua sefira é Malkut, a mais próxima do plano material, seu elemento é terra e a letra hebraica é o segundo heh em YHWH.
Depois tem ruach, literalmente “vento” ou “espírito”, que é o “assento das emoções e moral”, equivalente às chamadas seis sefiroth inferiores (de Yesod até Chesed), à letra vav3 em YHWH e ao elemento água (daí a associação com o plano emocianal). E então chegamos a neshamah, cujo significado também tem a ver com sopro – é a palavra que aparece em Gênesis 2:7, quando Elohim insufla o alento da vida no ser humano recém-criado do barro – e que é “a parte eterna da alma”, associada a Binah, à primeira letra heh e ao elemento ar (daí o corpo mental)4.
Vocês vão reparar que falta ainda uma letra do Tetragrama e um elemento. A dupla de Chokhmah e Keter, a letra yud em YHWH e o elemento fogo equivalem à dupla chayah & yechida, “vitalidade” e “singularidade”, que são partes da alma no pensamento cabalístico responsáveis por tratar da capacidade de se sintonizar à divindade e à fagulha divina, as partes que se fundem com Deus. No arranjo dos corpos sutis de que estamos falando, seriam os corpos espirituais de que não tratamos ainda.
No esquema teosófico há vários níveis acima do mental, chamados de causal, búdico, átmico, etc., mas como são conceitos muito abstratos e de difícil apreensão por estarem além do mental, eu acho confortável reduzir ao conceito de plano(s) e corpo(s) espiritual(is). Essa é a parte de nós que está além desta encarnação e que comanda os termos pelos quais ela se dá, as coisas que viemos fazer aqui e tudo o mais.
Os desejos e necessidades de cada corpo marcam um grau de consciência. Num nível mais elementar, é possível viver apenas satisfazendo as vontades do corpo físico com sua busca de prazer. Mas é o clichê dos clichês a pessoa perceber, no meio da farra, que ela se sente meio vazia, justamente porque tem a parte emocional gritando ali. Depois, satisfazer apenas às vontades emocionais, a famosa busca da felicidade, também pode levar a uma insatisfação, porque o ser humano com frequência mais busca sentido do que contentamento: Quantas pessoas já não largaram uma vida feliz e confortável, porque “não fazia sentido” para elas? E para muita gente pode ser que a coisa pare por aí: você sentir que fez algo da sua vida – e pode até ser possível que essa pessoa realmente tenha conseguido botar em prática aquilo que ela veio fazer neste mundo sem uma necessidade de buscar uma prática espiritual. Mas cada vez mais as pessoas andam sentindo uma necessidade que vai além e que, a meu ver, é o corpo espiritual se manifestando e pedindo para ser alimentado. E aí não tem jeito: a única forma de nutrir essa parte de nós é buscando um caminho espiritual.
Esse conceito dos muitos corpos é um dos primeiros temas que a gente vê em nosso curso de Introdução Prática à Magia, justamente porque é fundamental, no sentido de que serve de base, de fundamento, para muitas técnicas mágicas que vão se construindo uma sobre a outra. E é um assunto longo e complexo, mas por ora, vamos ficando por aqui, a fim de evitar que a leitura fique muito pesada. Num texto futuro eu devo discorrer um pouco mais sobre essa questão do alimento espiritual e algumas coisas que dá para fazer com essa percepção dos corpos sutis.
E, para quem tem interesse sobre o assunto, as nossas recomendações de leitura são as seguintes: o artigo de Moshe Miller no site Chabad, Neshamah: Levels of Soul Consciousness, sobre as partes da alma na Cabala judaica; a série de livros de Arthur Powell intitulados O Duplo etérico, O corpo astral e O corpo mental; e o livro do Mestre Choa Kok Sui, Alcançando a unidade com a alma superior.
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- Tem um artigo introdutório bastante interessante sobre o assunto escrito pela dra. Rosemary Arrojo em seu O signo desconstruído, que serve de capítulo de abertura do volume, intitulado “A noção do inconsciente e a desconstrução do sujeito cartesiano”. ↩︎
- Nefesh vem da mesma raiz semítica que dá napishtum, vida, em acadiano, N-P-SH, que significa “garganta”. ↩︎
- Curiosamente, em termos numerológicos, a letra vav tem valor 6, daí essas 6 sefiroth. ↩︎
- Na Cabala hermética, a sequência dos elementos é alterada, trocando-se ar e água. ↩︎